Amar missões, desprezar o missionário

Photo by arvin keynes on Unsplash

“Tá fazendo missões ou só passeando?”

“Um missionário não pode comer nesse tipo de restaurante.”

“Com que dinheiro você comprou isso? Das ofertas?”

Esse é um texto voltado para você, cristão membro de igreja. Já ouviu essas frases aí em cima alguma vez? Então provavelmente você não se dedicou ao ministério em tempo integral – ou parcial. E não há nada de errado nisso. Digo em relação ao não ter se dedicado, pois com essas frases há muito de errado.

Mas se já as ouviu – e provavelmente outras ainda piores -, então você é envolvido na obra de Deus a tempo inteiro ou parcial. Sustenta a si mesmo e sua família como “fazedor de tendas” ou através do suporte enviado por igrejas e irmãos que confiam na sua índole e no trabalho que, pela graça de Deus, executa onde quer que seja. E novamente, não há nada de errado com isso. Há séculos a obra missionária e ministerial tem sido levada à cabo da mesma maneira: irmãos e irmãs destacados por uma igreja local são enviados a um local distante de seus lares e famílias para dar início, ou prosseguimento, à obra que Deus tem para realizar naquele lugar. Essas pessoas são sustentadas por suas igrejas, por organizações, por indivíduos ou por seu próprio trabalho. Até aí, nenhuma novidade.

E nem deveria ser novidade, uma vez que a Bíblia fala sobre sustento missionário. Paulo coloca a si mesmo como exemplo disso. Filipenses 4.13 é exatamente sobre esse assunto. Um dos textos mais utilizados fora de seu contexto fala sobre… sustento missionário. O contexto imediato do verso em questão começa no verso 10, onde Paulo diz “Alegrei-me, sobremaneira, no Senhor porque, agora, uma vez mais, renovastes a meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes, mas vos faltava oportunidade.” E na sequência do verso 13, Paulo diz que no início de seu ministério, aquela igreja foi a única que quis apoiá-lo. Em outras palavras, Paulo agradece à igreja em Filipos pelo envio de sustento, e por desde o princípio acreditarem em seu ministério.

O dinheiro enviado por igrejas, entidades ou indivíduos é para que o missionário sustente a si mesmo e sua família. O certo seria que houvesse uma contabilidade lógica que previsse custos fixos bem como flutuantes, além de ter em conta o câmbio, no caso dos missionários no estrangeiro. Mas mesmo deixando isso de lado, pois há diversas realidades em que as igrejas estão inseridas, o fato é que o missionário não foi enviado, ou convidado, para férias contínuas. E em muitos casos, descanso e lazer nem mesmo encontram espaço dentro de um orçamento super apertado.

Eu diria que na grande maioria dos casos, aquilo que os missionários recebem não é o suficiente para que mantenham o conforto (sim, conforto) necessário para a execução do trabalho. A igreja muitas vezes pensa que se as contas estão pagas, então o missionário não tem do que reclamar. Mas esquece que ele veste outras roupas além das camisas que a missão lhe fornece para as fotos e projetos pontuais. Que seus filhos às vezes querem um biscoito, ou um brinquedo. Que precisam de material para a escola. Que o casal missionário precisa ter um tempo um para o outro, pois o principal ministério de ambos é a família.

A insistência em manter o missionário, e em alguns casos também o pastor, em uma situação de dependência e constante avaliação é o que, muitas das vezes, afasta os mais jovens da vocação ao ministério, e infelizmente, afasta muitas vezes os filhos dos missionários e de muitos pastores do convívio com a igreja.

Quando digo que a igreja mantém seus “funcionários” em uma situação de dependência e constante avaliação, me refiro à vigilância à qual muitos ministros são submetidos. E aqui, mesmo que o foco do texto seja nos missionários, sinta-se à vontade, distinto leitor, para aplicá-lo aos pastores, presbíteros, obreiros e demais pessoas que têm se submetido ao trabalho na seara do Senhor. “O missionário comprou um celular novo? Deve estar ganhando bem demais, devemos reduzir seu sustento.” “O pastor colocou os filhos numa escola mais cara? Não pode, os filhos dele devem estudar na pior escola possível, pois vão acabar trabalhando na igreja mesmo, então para que gastar com isso?” “O que, eles precisam de um carro novo? Mas o deles não tem nem 20 anos de estrada!”

E, às vezes, tomar um sorvete com a família e postar uma foto do momento em alguma rede social pode fazer com que digam que seu testemunho é péssimo e você perca mantenedores. São pessoas que dizem amar missões, mas têm desprezo pela vida do missionário.

A história das missões evangélicas já passou por diversos momentos. Desde o Conde Zinzerdorf e os Irmãos Morávios, passando por William Carey, David Livingstone, Hudson Taylor e Amy Carmichael, milhares de irmãos e irmãs que têm se dedicado, anonimamente, à causa de Cristo, vivem de forma que “o cordeiro que foi imolado receba a recompensa do seu sofrimento”. A avassaladora maioria deles um dia terminará seu serviço ao Reino e poucos terão qualquer lembrança de seus nomes. Mas certamente nenhum, daqueles que verdadeiramente foram chamados por Cristo para Sua obra, terá qualquer arrependimento do tempo empreendido e das limitações que a vida de serviço impôs a eles. Mas sempre haverá aquele grupo de pessoas que acha que seu trabalho não é nada demais, que eles têm uma vida boa, e que qualquer um poderia fazer o que fazem.

Aqueles que se empenham na vigilância da vida alheia, muitas vezes vêem uma realidade limitada, aquilo que é exposto em redes sociais. Mas as redes sociais não têm espaço para o choro, as dificuldades, todo o ônus pertinente a um modo de vida que, mesmo sendo levado e guiado por Cristo, não deixa de ser carregado de dificuldades e muitas tristezas. Não importa se o campo é dentro ou fora do país, a distância é cruel, especialmente quando você percebe que seus familiares e amigos mais próximos, mesmo com a saudade, continuam com suas vidas. Quem parte, quem está no campo, além da ausência e solidão, lida com a realidade do não-pertencimento. E não importa quantas novas memórias ou amizades sejam feitas, ele sempre será o não-inteiro, ou o pela metade. Já não pertence ao seu lugar de origem, e nunca pertencerá plenamente à sua localização atual. Há um excelente texto, escrito pelo missionário americano Joe Holman, que à época em, que o escreveu vivia na Bolívia, que relata muito bem a realidade de milhares e milhares de missionários. O texto se chama 10 coisas que seu missionário não vai te dizer (está em inglês).

E agora, para um lado mais pessoal. Eu e minha família estamos no campo há pouco menos de 3 anos. Para muitos, aquilo que viemos fazer não é missões. Eu atuo como líder da área da música em uma igreja local e tenho servido na mesma igreja como pregador, na ausência de nosso pastor e, também junto a ele, na equipe de pastores e obreiros que tem se revezado na tarefa de levar a mensagem a uma igreja em processo de sucessão pastoral (e em outras que surgirem). Pode-se dizer que é um trabalho de revitalização de algumas igrejas, mas certamente não de plantação. Além disso, às vezes ministro seminários sobre louvor e culto. Nada extraordinário, eu sei. Mas foi o que Deus nos chamou para fazer. De qualquer forma, não imaginávamos que no meio de nosso tempo aqui seríamos pegos por uma pandemia que provocaria mudanças no câmbio muito agressivas, e nos levaria a perder mantenedores e trabalho. Milhares de pastores e missionários passam pelo mesmo problema.

Passamos períodos de muita restrição financeira, e outros de mais tranquilidade. Tudo devido à provisão divina através de trabalho, amigos, família, ofertas de desconhecidos. Somos gratos a Deus por tudo isso. E somos gratos também por, na maioria das vezes, não sermos vítima dos vigilantes de redes sociais, vasculhando o que fazemos e não fazemos, à procura de “provas” de nossa “infidelidade monetária”. Mas nem tudo são flores, e essas pessoas existem, e escrevem, e acusam, e machucam.

Ao longo de quase 13 anos de ministério público, como músico e pregador itinerante, já ouvi muita coisa em relação ao sustento. A maioria das pessoas que me acompanham sabe como tenho lidado com isso ao longo desse tempo. Nada mudou em relação a missões. Continuo bivocacionado. Continuo trabalhando para o sustento de minha casa, embora hoje tenhamos mantenedores. E quero crer que, como missionário, não estou impedido de tirar férias, buscar ter um carro um pouco melhor (e com menos problemas mecânicos), dar presentes à minha esposa e filha, ou mesmo de tomar um sorvete com minha família. Missionários e pastores são pessoas com sonhos, aspirações e desejos que, como para a maioria das pessoas, às vezes serão satisfeitos, e às vezes não. Mas ao mesmo tempo, são pessoas que carregam uma parcela de abandono e negação muito grandes, que a grande maioria das pessoas não vê, e não dá importância. E há uma lacuna em nossas vidas que, mesmo com oração e a confiança na presença da companhia de Jesus, não será preenchida. Nem por mais ofertas, nem por férias, nem por carros, e nem por presentes e sorvete. E a graça de Deus tem que bastar.

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